Viagens
- Luiz Sampaio
- 10 de set. de 2019
- 2 min de leitura
Sua primeira lembrança foi o sentimento de “para sempre” quando, aos três anos de idade, lhe explicaram “não chora, mamãe volta logo, só dois anos, passa rápido, você nem vai sentir”. A pista imensa, sem fim. A mamãe foi se afastando, afastando, entrou no avião e desapareceu. Transformou-se em cartões postais que ele não entendia muito bem: de onde? mamãe? quem?
E havia o espelho da sala. Alto até o teto. Bonito. Dourado. Lá em cima o brasão do seu bisavô. Ainda glorioso em tantas narrativas distantes como contos de fadas: conde, condessa, festas, riquezas e imperador. Bem no cantinho, na base do espelho, aos seis ele colou a fotozinha do Sultão, seu amado perdigueiro, atropelado por um caminhão no sítio do papai. Aos nove juntou-se a da Chibata, sua eguinha alazã, cuja vacina estava vencida e o tétano a matou. Aos doze foi o Gimba, seu inesquecível pastor alemão. Assim a vida foi sendo gravada no espelho, em imagens que lá sobrevivessem entre as outras, passageiras, que desapareciam sem contar lembranças.
Ano a ano fazia um risco na moldura, com um lápis rente à cabeça, as costas retas encostadas no espelho, para gravar sua altura no dia do aniversário. Depois, com um prego, fazia uma leve ranhura no dourado, deixando ali sua marca para sempre. A penúltima foi aos treze. Depois já era grande e não mais se permitia bobagens de criança. A última foi aos dezenove, antes de tomar o avião para a bolsa de estudos, como fizera sua mãe. Foi este o último gesto da sua infância, registrado no espelho para todo o sempre.
Guardo ainda os móveis da minha mãe. Na sala, o espelho me olha tanto quanto eu a ele. Miramos-nos toda vez que volto ao passado, eu consternado, ele silencioso em sua superfície impassível, como se nunca houvesse existido meu bisavô e as gerações que me forjaram como hoje sou. Por mais que tente ver através de suas manchas, suas rachaduras do tempo, nada encontro que me diga o que foram, o que fui. Apenas esta expressão de cansaço, este ser arcado me aparece indelével por um instante, enquanto busco em minha imagem alguma coisa que eu reconheça como sendo eu.
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